Eu sonho com uma organização diferente da arte e dos artistas. Tudo indica que não estarei vivo para ver realizado o que fico pensando apenas como projeto. Na verdade, devo dizer mais tecnicamente – política pública. Estive refletindo sobre a arte pós-contemporânea e cheguei à conclusão de que a tendência é rumarmos para o fim das “coleções particulares” em favor do “compartilhamento público”. Quero lembrar, inicialmente, as diversas “galerias” que tivemos durante a nossa curta trajetória humana. Na Idade Antiga, eram os palácios e as casas da aristocracia o local para exposição de arte e, portanto, de poder. Há algo mais grandioso do que fez Ramsés? Qual demonstração de poder maior do que um Colosso de Rodes? O que dizer das visões de Nabucodonosor? O ideário de governança misturava-se com os marcos artísticos e a arte era o mais eficiente instrumento de comunicação. Que o diga os imperadores romanos Vespasiano, Domiciano, Flaviano e Adriano, por exemplo. Este último tão culto que aprendeu grego.
No período medieval, com a turbulência política, a arte migrou para uma nova galeria – a Igreja. Era ali que os artistas poderiam se expressar, pautados na ideologia de quem encomendava e sustentava os artesãos. Surgiram pérolas italianas, francesas, inglesas e alemãs, todas engastadas nas ostras de templos, onde entravam apenas os fiéis. Em seguida, com a reunificação dos Estados Modernos, novamente a galeria passou a ser o palácio. Todo o poder precisava convergir para a figura real. Os artistas deveriam representar essa grandiloquência, ostentando na arquitetura, escultura, pintura e música a força do patrono. Surgiu o mecenato, geralmente estimulado na competição de poder entre monarcas ou famílias importantes como os Médici, Sforza, entre outros. No absolutismo tardio, o “despotismo esclarecido” foi fundamental para que os artistas pudessem se desenvolver. Quero o impacto intelectual que proporcionaram José II, Felipe V, Francisco I, Catarina II e o nosso Marquês de Pombal.
Finalmente, com o desenvolvimento do capitalismo e seu aprofundamento com a Revolução Industrial, a expressão artística atomizou-se. Os painéis, tapeçarias, azulejarias viraram quadros individuais, cujas bordas estão limitadas por molduras; os manuscritos escritos, reescritos, copiados e armazenados em mosteiros e palácios transformaram-se em livros; a música de coros e orquestras que, antes, era ouvida apenas em igrejas ou salas especiais foi gravada em discos postos à venda; tudo “colecionável” por quem podia pagar. O capitalismo naturalmente inclina-se à atomização e acumulação e a arte é um artigo de valor a mais na composição contemporânea. Com o poder mais difundido, novos mecenas particulares proliferaram-se e alguns governantes revalorizaram os antigos marcos artísticos públicos. No Brasil, famílias como Chateaubriand, Moreira Salles, Guinle, Klabin, Penteado, Matarazzo, Mindlin são exemplos rapidamente lembrados de incentivadores da arte, seja no setor público ou na iniciativa privada.
E agora? O que vai acontecer? Qual o próximo passo? Acredito que a arte rume inevitavelmente para a rua. Os imóveis já não comportam coleções particulares de arte que se expressa de formas novas, demandando cada vez mais espaço para instalações e exposições interativas. Quem vai colecionar arte não é uma pessoa e sim um bairro, uma cidade. É para a rua que os artistas devem mirar. O povo que sempre precisou de “tutores” e de “tradutores” para a arte no palácio, na igreja, na galeria, poderá livremente admirar, interagir e interpretar expressões que pertencerão à coletividade. As cidades vão ser identificadas por expressões artísticas, como Paris pela Torre Eiffel, Sidney pela Opera House, Rio de Janeiro pelo Cristo Redentor. A escala artística sairá do quadro individual para o painel, do pequeno teatro para a praça pública, da galeria para as fachadas dos edifícios.
É isso que sonho para a arte e para os artistas: serem projetados para a coletividade, em maciças doses de educação pública para a apreciação. Sonho com uma cidade, com um estado, com um país que compreenda a força da arte em termos de cidadania e, por que não?, de economia sustentável com o turismo que gera bilhões em dividendos. Não devemos privilegiar “panelinhas”, nichos de poucos artistas, limitando o acesso e burocratizando os processos criativos. Essa é a contramão do que exige o povo. A sociedade pouco se importa com miudezas legislativas. Não é isso que nos dará mais cidadania, não é isso que nos trará mais civilidade, não é o formalismo estéril que nos possibilitará mais educação.
Não sei se estarei vivo para ver acontecendo o que sonho. Provavelmente não. Sou um romântico. Enquanto não tenho arte no meu bairro, na minha cidade e no meu Estado, vou continuar colecionando, ajudando o artista e me ajudando a ser mais feliz. Coleciono tudo o que me emociona: pintura, escultura, livros, enfim, quero estar próximo do que há de humano na humanidade. Mas sei que é questão de tempo para doar, devolver a arte para o público que precisa dela. Sonhos que os governantes terão essa mesma mentalidade. Em vez de se orgulharem em inaugurar uma ponte, uma rodovia, algum dia se orgulharão por deixar um marco artístico na cidade pelo qual que poderão também se eternizar. Ah… talvez eu espere demais. Eu queria estar vivo para aproveitar uma espécie de pax brasilis. Vou continuar sonhando com uma reencarnação do estoico imperador-filósofo Marco Aurélio que, de tão sensível, mandava um escravo lhe soprar no ouvido várias vezes ao dia: lembra-se, excelência, que sois apenas um homem… Algum dia, eu apertarei a mão deste homem.
Eduardo Mahon é advogado.