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Lições de Vitória: derrota da civilidade

O que se assiste nos últimos dias, com a greve dos policiais militares do Espírito Santo, tem sido um amontoado de insensibilidade humana, falta de civismo e civilidade, além da barbárie simples e pura. Quem achava que o povo é bom, terá a partir dos eventos de Vitória bons motivos para mudar de opinião.

Vemos a comprovação do que Hobbes afirmou no século XVII, que o homem é o lobo do homem, que sem Estado estamos num estado de guerra de todos contra todos, e que as leis, sem a força da espada, de pouco ou nada serve. Bastou a polícia sair de cena das ruas de Vitória, que muitos, e não apenas bandidos, saíram para saquear a cidade e os assassinatos cresceram exponencialmente, enfim, revelou-se que só há respeito pelas leis quando há o perigo do castigo.

Tudo começa com a atitude violenta dos policiais/familiares, que ainda que possam ter motivos legítimos para protestar, perdem qualquer legitimidade ao utilizarem uma atitude contra a população civil – que é quem paga seus salários através dos impostos coletados dos cidadãos, e não contra as autoridades – que é quem lhes remuneram.

Se era para mostrar a falta que faz a polícia, não é ao povo que deveriam mostrar, pois o povo sofre com o policiamento precário das cidades, mas contra as autoridades executivas, legislativas e judiciárias que têm uma segurança privilegiada perto dos comuns dos mortais. Deveriam parar de fazer a segurança de prefeitos, governadores, deputados, vereadores, juízes, e fortalecer a segurança civil.

Ora, são esses os responsáveis pelas leis e execução da remuneração inadequada que recebem, não o povo, que além de vítima dos governantes e legisladores, também acaba vítima da polícia. Tenho certeza que assim que as autoridades ficarem desguarnecidas, ficarão mais sensíveis as causas dos policiais; enquanto apenas o povo sofre, as autoridades insensíveis dificilmente se sensibilizam, além de jogarem a raiva pública contra a instituição policial.

O mais saliente da situação da polícia cercada por familiares, é o tratamento diferenciado dedicado aos mesmos. O que a polícia faria se qualquer um de nós – não parentes de policiais militares – se colocasse na frente dos quartéis e impedíssemos de saírem? Spray de pimenta, gás lacrimejante, bomba de efeito moral, bala de borracha, jato d’água e até mesmo munição letal, na melhor das hipóteses, seriam utilizados contra nós. Seríamos presos, processados, depois de apanharmos de cassetete e sermos ameaçados.

Ou seja, para a polícia, sua família pode tudo, e nós não podemos nada. Como querem o apoio da população à sua causa, quando apenas nos causam problemas e pouco garantia nos dão para a nossa sobrevivência? Parente de policial tem mais direitos do que os demais cidadãos, só o povo merece violência na visão e prática da policia militar do Espírito Santo.

Aliás, essa insensibilidade da polícia do Espírito Santo é comum aos funcionários públicos de uma forma geral: quando vão protestar, reivindicar, quem sofre é sempre o povo, que invariavelmente fica sem saúde, sem médico, sem aposentadoria, sem benefício, sem aula sem qualquer tipo de serviço público que a categoria protestante realize.

Em nome de seus interesses privados paralisam os serviços públicos e prejudicam a população; não é um ato contra o governo, mas contra a população. Há uma violência cívica toda vez que funcionários públicos paralisam suas atividades para reivindicar, agindo contra o bem comum: o povo que paga impostos fica sem os serviços, e o Estado economiza dinheiro ao não gastar no atendimento público.

De tudo que está acontecendo, o que mais me espantou foi a violência cívica do Espírito Santo. Bandos de gente saqueando lojas e supermercados, depredando bens públicos e privados, o número estrondoso de assassinatos. Isso não é apenas falta de autoridade pública, o que ocorre, mas falta de civismo e de civilidade da população.

Não foram apenas bandidos que agiram, mas pessoas comuns que até então nunca haviam cometido algum delito, que respeitavam razoavelmente as leis, aproveitando-se da ausência da espada da lei, apropriaram-se de tudo que os olhos viram e os braços podiam carregar.

Na maior parte do mundo a segurança jurídica vem mais de uma atitude respeitosa dos cidadãos para com suas leis, do que da ação das autoridades policiais; as pessoas buscam o bem comum e desenvolver a confiança mútua como um capital social. Aqui as leis só são respeitadas quando não se pode transgredi-las sem algum tipo de punição, e ninguém quer saber o que é e como se deve estabelecer o bem comum, ainda que se queira desfrutá-lo. E confiança mútua é algo que não existe e dificilmente existirá: desconfiamos de tudo e de todos, e achamos que todos conspiram, o que parece legitimar as conspirações particulares de cada um.

Roberto de Barros Freire é professor do Departamento de Filosofia/UFMT

rdefreire@uol.com.br


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