Uma das fases mais tristes de nossa história foi, sem dúvida, o período da escravidão. Um passado, não muito distante, que muitos teimam em ignorar e que ainda está presente em muitos aspectos de nossa cultura cotidiana. É preciso ter educação política para entender a importância dos nossos irmãos negros e o quanto devemos respeitá-los.
Exige uma reflexão, desde quando eles foram sequestrados das suas terras na África e trazidos para o Brasil como escravos?
Em primeiro lugar, em várias partes do mundo, inclusive na Europa, a escravidão era uma prática adotada mesmo antes do século XVI. Só que não era prática dominante para se ter mão de obra, nem era só composta por escravos africanos (negros).
O que vai mudar radicalmente no século XVI é a implantação do sistema colonial e a criação do tráfico negreiro como elemento fundamental do comércio colonial e fonte de geração de lucros excepcionais. Isso ocorrerá durante séculos envolvendo especialmente o Brasil, as Antilhas e o Sul dos Estados Unidos.
O martírio dos afrodescendentes iniciou bem antes de pisar em nosso continente. Eram capturados em guerras inventadas e estimuladas por comerciantes. Começou na viagem em condições desumanas, em porões de navios, chamados também de tumbeiros, onde passavam fome e, muitos morriam antes mesmo de chegar ao Brasil, sendo jogados ao mar.
O Oceano Atlântico é o maior cemitério do mundo, como bem afirma Mário Theodoro, meu consultor do Senado Federal, na música “Dois Negros”, de sua autoria. Calcula-se que mais de 2 milhões de africanos tenham sido jogados ao mar, mortos ou semivivos, durante as travessias atlânticas.
Aqueles que conseguiam chegar eram vendidos como mercadorias pelos comerciantes. Os que eram mais saudáveis valiam muito mais do que os mais velhos e fracos. As mulheres negras, em vários casos, serviam como “amas de leite” e frequentemente eram violentadas e abusadas sexualmente.
Aqui, os escravos viviam em senzalas, sujas e úmidas, e ficavam acorrentados para evitar fuga. Trabalhavam cerca de 16 horas por dia sob ameaça de chicotes. A comida era escassa e jogada em cochos ou no chão, para que comessem como os animais. A palavra de Ordem dos Senhores era destruir os valores dos negros e impor a superioridade dos brancos. Quando alguém conseguia fugir, ia para os Quilombos, comunidades de negros fugitivos, de luta e resistência. Mas, também, uma área onde produziam feijão, batata-doce, mandioca, milho, cana-de-açúcar, dentre outras atividades.
Os Quilombos existiam em todas as regiões e até na Amazônia. O maior deles foi Palmares, onde chegou a ter 10 mil habitantes entre 1670 e 1678, tendo sido governado por Ganga Zumba (Grande Senhor). O seu sobrinho e herdeiro, Zumbi, foi proclamado Rei em 1680 – após a morte de Ganga Zumba – e depois de liderar várias resistências.
Os africanos escravizados trouxeram grandes contribuições à nossa cultura culinária, à língua portuguesa falada no Brasil e também aos nossos costumes. Até mesmo na tecnologia utilizada nas usinas de cana e na mineração temos muito a dever aos africanos.
Diferentemente do que se propagou por muito tempo, entre os que foram escravizados haviam reis e rainhas, gente culta (muito mais que os que os escravizavam) e com habilidades sofisticadas. Não somente temos sangue indígena em nossa constituição societária e humana, temos sangue africano que se misturou ao de várias etnias que formam o que o país é hoje. Os que negam isso, preferem ter sangue africano nas mãos a tê-los correndo nas veias.
O Brasil perdeu muito ao não realizar o processo de libertação dos escravos como um passo de desenvolvimento. A ganância da elite branca os proibiu de adquirir terras (Lei de Terras de 1850) e os manteve na profunda miséria mesmo depois da Abolição. No imaginário da elite, até próximo da II Guerra Mundial, veja bem, até meados do século passado, o Brasil seria desenvolvido se “ embranquecesse”. Tudo foi feito para isso. Um absurdo!
Mas o Brasil é um país de mestiços, como bem afirmou Darcy Ribeiro. E será um país desenvolvido formado por mestiços. Essa é nossa força. Só seremos verdadeiramente desenvolvidos quando soubermos reconhecer isso.
Vicente Vuolo é economista, cientista político e analista legislativo do Senado Federal.