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Brasil pode contribuir para pacificação na Síria, diz enviado especial da ONU

G1

No dia em que foram retomadas as negociações para paz na Síria em Genebra, o enviado especial das Nações Unidas, Staffan de Mistura, declara em entrevista exclusiva ao G1 que “a única solução para o fim da guerra é um processo político” e que o Brasil pode colaborar para esse objetivo.

Considerado pela imprensa internacional como o “homem que faz o trabalho mais difícil do mundo”, De Mistura foi encarregado em julho de 2014 pelo então secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, após a renúncia do então enviado especial Lakhdar Brahimi. Veterano na arte de solucionar conflitos, esse diplomata ítalo-sueco de 69 anos já trabalhou para o fim de 19 guerras em todo o mundo em 42 anos de carreira. Foi representante especial da ONU no Iraque, mesmo cargo ocupado pelo brasileiro Sérgio Vieira de Mello até o atentado que o matou, em agosto de 2003.

Durante sua carreira, De Mistura ficou famoso por suas soluções originais para a resolução de crises humanitárias. Por exemplo, em 1989 conseguiu convencer uma companhia aérea soviética a fazer uma ponte aérea com Cabul, capital do Afeganistão, de onde as tropas soviéticas estavam se retirando. Sempre nos anos 1980 ele conseguiu levar vacinas a áreas remotas do Sudão utilizando camelos, depois de mandar instalar painéis solares em suas corcovas para manter os soros refrigerados. E, para evitar que bandidos roubassem os animais, mandou pintar as corcovas de azul para que os helicópteros da ONU pudessem identificá-los com facilidade.

Na entrevista, De Mistura explica a estratégia da ONU para tentar acabar com uma guerra na Síria, na qual as forças do presidente Bashar Al-Assad enfrentam diversos grupos rebeldes contrários ao seu governo, além do grupo jihadista Estado Islâmico. O conflito terrivelmente sangrento dura mais de seis anos – mais tempo do que a Segunda Guerra Mundial -, e deixa um saldo de cerca de 400 mil mortos. Até agora, forçou mais de 6,3 milhões de sírios a abandonar suas casas e se proteger em outra região do país, além dos mais de 5 milhões que se tornaram refugiados.

O Sr. é enviado especial da ONU em um conflito que se alastra há mais de seis anos, que já deixou mais de 400 mil mortos, milhões feridos e outros milhões de refugiados. Um conflito em que 10 nações interferem, cerca de 100 grupos armados se enfrentam no campo de batalha, e as disputas religiosas acabam exacerbando a situação bélica. A essa altura, o Sr. acha que é ainda possível alcançar a paz na Síria?

É uma pergunta muito complexa. Não há alternativas que não um processo político que leve à paz na Síria. A alternativa seriam outros cinco anos desse conflito horrível. Todavia, eu acredito que estamos em uma posição que conseguirá levar adiante um processo político. Isso porque todas as partes estão entendendo que não há soluções militares possíveis nessa guerra. As provas vêm dos fatos que há sérias tentativas de desescalada (esforço para redução na intensidade dos combates) ocorrendo nesse momento em Astana (que sedia negociações organizadas por Rússia, Turquia e Irã) e tentativas sérias de manter um diálogo político em Genebra (negociações sob o égide da ONU).

Mas como levar adiante as negociações de paz agora que o governo sírio parece estar ganhando a guerra, pelo menos sob um ponto de vista militar?

Isso é verdade. Mas a vitória nessa guerra não é somente conquistar territórios, e sim conseguir mantê-los e estabilizar definitivamente o país de uma forma sustentável. E isso também aconteceria através da reconstrução da Síria, o que poderia ser feito graças à cooperação da comunidade internacional. Tudo isso só pode ser realizado se, conjuntamente com um processo de redução da violência, haja um processo político verdadeiro e inclusivo. Essa é a razão pela qual eu acredito que de todas as partes há a compreensão de que essa é a única alternativa.

A vitória nessa guerra não é somente conquistar territórios, e sim conseguir mantê-los e estabilizar definitivamente o país de uma forma sustentável.

Milicianos das Forças da Síria Democrática entram em Raqqa (Foto: Associated Press)Milicianos das Forças da Síria Democrática entram em Raqqa (Foto: Associated Press)

Milicianos das Forças da Síria Democrática entram em Raqqa (Foto: Associated Press)

E quanto tempo o Sr. acha que vai demorar para alcançar essa solução política?

Eu não saberia dizer, mas acredito que há um movimento nessa direção. A prova disso são os colóquios de paz de Astana e de Genebra.

Entretanto, em Genebra o Sr. tentou de tudo, até os “colóquios de proximidade” para evitar que as partes se recusassem a participar para não ter que se encontrar na mesma sala. Mesmo assim os resultados foram poucos. E há problemas também em Astana.

Verdade. Entretanto, lembre-se que qualquer conflito, especialmente complexo como esse, em que há um grande envolvimento de outros países, não pode ser resolvido de uma noite para a outra. Esse é um conflito complexo como jamais se viu antes. Com um envolvimento internacional, regional e local, em três diferentes círculos concêntricos, e é de fato uma guerra por procuração (quando as grandes potências usam atores menores, como grupos armados locais). Isso não se resolve de forma instantânea. São necessários muitos passos adiante para se preparar. E é isso que está ocorrendo em Astana sob o ponto de vista da desescalada e em Genebra sob o ponto de vista da preparação política.

Que tipo de preparação política?

Se lembra da conferência de Bonn (na Alemanha) sobre o Afeganistão de 2001? Ela foi rapidamente anunciada, organizada e realizada, e muita gente se surpreendeu como um conflito podia ser resolvido de forma tão rápida e passar para uma solução política. Mas Bonn foi antecipada por uma longa série de encontros, de cúpulas, de reuniões preparatórias, que foram extremamente importantes e úteis. O que foi decidido nesses encontros foi a base da conferência de Bonn. Os encontros em Genebra e Astana vão nessa direção.

Mas a situação no Afeganistão era completamente diferente. Lá havia apenas um grupo lutando contra o governo e as forças da coalizão ocidental: os Talibãs. Na Síria são 98 grupos diferentes, entre os quais o Estado Islâmico (EI).

Sim, você tem razão, a situação na Síria é muito mais complicada em comparação com o que era no Afeganistão. E não porque o Afeganistão não fosse complexo. Lá também havia o envolvimento do Paquistão, da Rússia, Índia ou do Irã, apenas para nomear alguns atores regionais. E, além disso, havia os 53 países da coalizão ocidental da Otan. Não era pouco complexo. Mas havia uma grande diferença, como você notou: não havia o Estado Islâmico no Afeganistão. E esse é um elemento novo que há somente na Síria e no Iraque.

O encontro de Astana foi organizado por algumas das partes envolvidas no conflito: a Rússia, o Irã e a Turquia. O Sr. não acha que isso cria um problema de legitimidade? E o fato de que Astana não conseguiu alcançar ainda nenhum resultado não é uma consequência?

Astana não conseguiu alcançar o que era esperado, mas também não foi um fracasso. Isso porque a desescalada já está acontecendo. Há uma redução da violência na Síria. O que o povo sírio está pedindo é “façam de tudo, mas reduzam a violência”. Além disso, em Astana houve um grande trabalho em delinear as áreas de desescalada e quem deveria realizar as operações de observação e de verificação desse processo. Muito desse trabalho não foi publicado. O que ocorreu em Astana foi que surgiram divergências sobre algumas áreas do território sírio. E é por isso que eu considero que Astana não foi um fracasso, apenas alcançou menos do que nós esperávamos. Entretanto, já não temos mais uma escalada da violência e a redução nos confrontos continua ocorrendo.

Há uma redução da violência na Síria. O que o povo sírio está pedindo é “façam de tudo, mas reduzam a violência”.

 Bebê é atendido após suspeita de ataque com produtos químicos em Khan Sheikhun, em Idlib, no norte da Síria (Foto: Mohamed al-Bakour / AFP) Bebê é atendido após suspeita de ataque com produtos químicos em Khan Sheikhun, em Idlib, no norte da Síria (Foto: Mohamed al-Bakour / AFP)

Bebê é atendido após suspeita de ataque com produtos químicos em Khan Sheikhun, em Idlib, no norte da Síria (Foto: Mohamed al-Bakour / AFP)

Os encontros de Astana não correm o risco de criar confusão com os de Genebra?

Não, o trabalho feito em Astana é relativo apenas a desescalada militar, não ao processo político. Você tem razão quando diz que há três países envolvidos no conflito que atuam como supervisores em Astana, e eles não podem garantir a atitude de todas as partes em luta. A única maneira para ter um engajamento político forte e eficaz é através das Nações Unidas. E isso está ocorrendo em Genebra.

Mas vamos olhar aos fatos no campo de batalha: quem decide de verdade os destinos da Síria são Turquia, Rússia e Irã.

Vamos ser francos: se a Rússia, o Irã e a Turquia chegassem a um acordo em Astana, eles teriam uma capacidade física e militar muito grande para garantir o fim das hostilidades na Síria. É por isso que os chamamos de “garantidores”. A Turquia tem uma influência muito forte sobre as forças da oposição. Os outros dois, ao contrário, têm uma influência muito grande sobre o governo sírio. E é por isso que o processo de desescalada parece funcionar. Não perfeitamente, mas parece funcionar. Do outro lado, em Genebra nós estamos oferecendo um horizonte político para qualquer acordo militar. Isso porque a desescalada em si não é possível sem um horizonte político claro. Esse é o nosso trabalho. Nós nos fornecemos suporte mutualmente.

Se a Rússia, o Irã e a Turquia chegassem a um acordo em Astana, eles teriam uma capacidade física e militar muito grande para garantir o fim das hostilidades na Síria.

Falando em horizontes políticos, uma transição tranquila, talvez com a permanência, mesmo que temporária, de Bashar Al-Assad no poder, é algo viável? E o Sr. acha que será aceito pelas oposições?

Eu não posso falar em nome das forças de oposição, nem mesmo em nome do governo de Assad. Então, vou responder a essa pergunta dizendo: vamos deixar o povo sírio decidir. Não serei eu ou nenhum outro a sugerir qual governo a Síria deverá ter no futuro. Nosso objetivo é preparar as coisas de uma forma que os sírios possam chegar a uma conclusão sobre quem será sua própria liderança política.

Sírio dirige em meio a escombro de prédios no bairro de Aghiour, em Aleppo (Foto: Joseph Eid/AFP)Sírio dirige em meio a escombro de prédios no bairro de Aghiour, em Aleppo (Foto: Joseph Eid/AFP)

Sírio dirige em meio a escombro de prédios no bairro de Aghiour, em Aleppo (Foto: Joseph Eid/AFP)

Se negociações de paz fracassarem, a Síria corre o risco de se tornar um estado falido como a Somália, presa em um conflito permanente?

Sua pergunta é o pesadelo que temos todos os dia em nossa frente. Se esse conflito prosseguir sem nenhum processo de desescalada ou de uma solução política crível e inclusiva, que consiga incluir também os que se sentiram excluídos do poder até hoje, teremos ainda uma situação de instabilidade da Síria. Vimos o fim da batalha de Mossul, agora estamos vendo o fim de Raqqa como capital do EI. Mas sem um verdadeiro processo político o EI não será derrotado. Corremos o risco de ter que enfrentar uma guerrilha de baixa intensidade nos próximos anos no Iraque e na Síria. Ou, pior ainda, poderíamos ter uma divisão de fato do país. Todos esses cenários devem ser evitados. Por isso, é tão importante não somente um processo de desescalada mas também uma fórmula política inclusiva e profunda em Genebra, apoiada pela comunidade internacional, mas – mais importante – aceita pelos sírios.

Os russos e os americanos começaram a colaborar contra o EI, mas agora parece que essa colaboração está azedando. Há um risco de confronto direto entre as partes? O que a ONU está fazendo para evitar essa potencial catástrofe?

Os russos e os americanos estão dialogando muito sobre a Síria. No G20 de Hamburgo vimos uma reunião de duas horas entre Donald Trump e Vladimir Putin, e esse foi um assunto central do encontro. Os americanos e os russos têm muitos interesses em comum na resolução do conflito na Síria. Um deles é particularmente importante para ambos: destruir – não somente lutar contra – o EI. E para fazer isso é necessário estabilizar a Síria, pois em caso contrário esse problema voltará novamente. Em conclusão, sou otimista sobre a colaboração entre Estados Unidos e a Rússia sobre a Síria.

O Sr. trabalhou para solucionar 19 conflitos mundo afora. Não acha que essa guerra é diferente de todas as outras, pois todos lados desrespeitam as leis mais básicas de guerra e chegaram a atacar comboios de ajuda médica ou humanitária? Essa é uma guerra sem regras, sem limites morais?

Esse conflito já contou com três enviados especiais das Nações Unidas. Kofi Annan, Laktar Brahimi e eu. Todos definimos esse conflito como o mais incrivelmente complicado para se resolver. E provavelmente a maior tragédia humanitária que ocorreu no mundo após a Segunda Guerra Mundial. Mais de 400 mil pessoas mortas, milhões de feridos, 11 milhões de refugiados, destruições enormes e gigantescos problemas nos países vizinhos. Mais de 98 facções envolvidas na frente de batalha, 10 países interferindo no conflito e o Estado Islâmico. Sim, esse é de longe o conflito mais complicado sobre o qual eu trabalhei em toda minha longa carreira. Entretanto, acredito que nesse momento há uma chance para tentar resolvê-lo. E uma das razões é que há um interesse de muitas partes em resolvê-lo, principalmente por parte da Rússia, mas também por parte de outros países. E essa com certeza é a estrada principal para encontrar uma solução definitiva.

A diplomacia brasileira está contribuindo para a resolução do conflito na Síria? Como um país que conta com mais de 20 milhões de descendentes árabes, o que o Brasil poderia fazer a mais para contribuir a pacificar Síria?

Na minha opinião, o Brasil tem um dos melhores corpos diplomáticos do mundo. Sempre admirei profundamente o altíssimo nível de preparação e a qualidade do trabalho que os diplomatas brasileiros mostraram em muitos outros conflitos em que trabalhei. Sempre apreciei muito esse trabalho diplomático do Brasil. É verdade, o Brasil tem uma enorme comunidade árabe-síria, que foi muito positiva para o desenvolvimento econômico do país. E eu tenho certeza que os sírios-brasileiros estão sofrendo muito vendo a situação na Síria, destruída por esse conflito horrível. Por isso, o Brasil poderia continuar apoiando cada vez mais o trabalho da ONU na resolução política do conflito. E quando for o momento oportuno, poderá trabalhar diretamente no território sírio fornecendo assistência humanitária e técnica.

O Brasil tem um dos melhores corpos diplomáticos do mundo. Sempre admirei profundamente o altíssimo nível de preparação e a qualidade do trabalho que os diplomatas brasileiros mostraram em muitos outros conflitos em que trabalhei.

Criança síria brinca em campo para desalojados perto da cidae de Manbij, norte da Síria. Milhares de pessoas deixaram o lado oriental da província de Aleppo, que é dominado pelo Estado Islâmico  (Foto: Delil Souleiman / AFP)Criança síria brinca em campo para desalojados perto da cidae de Manbij, norte da Síria. Milhares de pessoas deixaram o lado oriental da província de Aleppo, que é dominado pelo Estado Islâmico  (Foto: Delil Souleiman / AFP)

Criança síria brinca em campo para desalojados perto da cidae de Manbij, norte da Síria. Milhares de pessoas deixaram o lado oriental da província de Aleppo, que é dominado pelo Estado Islâmico (Foto: Delil Souleiman / AFP)


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