Em nossa política, quase tudo serve de chiste. Um dos mais famosos, e mais lamentáveis, nascido nos tempos sombrios da ditadura no Brasil, refere-se ao enunciado pelo qual se dizia que as esquerdas só se uniam na cadeia.
Gostando ou não, infelizmente, havia naquilo um fundo de verdade; aliás, vindo de mentes conservadoras, ele deveria ter sido levado a sério pelas esquerdas, ou, melhor, por aqueles que se consideram progressistas.
Mas por que me lembrei disso agora?
Por conta de uma guerra de narrativas produzidas em torno do último 31 de março. Aliás, não me lembro de tanta repercussão dessa data anteriormente. Em geral, as mentes progressistas – em débito com os assassinados, os torturados, os exilados, os perseguidos, os censurados durante o período da ditadura militar – deixavam passar a data sem maiores tributos às vítimas daquele regime recheado de crueldades.
Mas Bolsonaro nos tirou do conforto. Como todos sabem, na semana anterior ao 31 de março, ele pediu às Forças Armadas que comemorassem o golpe, ao qual ele e seus iguais chamam de revolução.
Pronto. Aquele pedido do presidente foi como um tapa em nossa cara. Foi como dizer: “Progressistas, uni-vos!”.
E nos unimos, independentemente se próximos de partidos e tendências políticas, ou fora disso tudo. O que nos moveu foi a honestidade em torno da verdade de nossa história. Foi nossa inconformidade com o ataque feito ao estado de direito.
Assim, Bolsonaro, um ícone da direita brasileira, que já começa a derreter este país, conforme preconiza a Revista Veja, no alto de sua capa desta semana, fará um grande trabalho à memória de nosso país. Na realidade, já está fazendo: unir os progressistas em torno de bandeiras que lhes são gerais e caras, com ênfase a tudo que se refere ao golpe de 64.
De pronto, nas redes sociais, surgiu uma interessante proposta, aderida espontaneamente por muita gente: vestir algo preto no dia 31 de março para demonstrar o luto e o tributo à memória das vítimas da ditadura.
A partir dessa mensagem, a guerra ideológica das narrativas da história que fazemos foi se avolumando. De última hora, muitos atos foram convocados nos mais diversos lugares do país. Quase todos se colocaram sob o mesmo lema: “Ditadura Nunca Mais”, em evidente alusão ao título do livro “Anos de Chumbo: Brasil Nunca Mais”, de Paulo Evaristo Arns, publicado em julho de 1985, ou seja, logo após o lançamento de “Vai Passar”, música ícone que marca o final da ditadura, lançada por Chico Buarque em 1984.
No plano local, a UFMT, mais especificamente no Saguão do Instituto de Linguagens e da Faculdade Comunicação e Artes, foi realizado um ato com o mesmo objetivo. Dele, participaram professores, estudantes, artistas, comunidade… para cantar e contar direito a história que a direita brasileira quer entortar, escondendo das novas gerações sua dimensão maligna, repleta de mortes, de exílios, de torturas…
Dessa forma, acredito que, a cada novo ano, quando as águas de março já estiverem fechando o verão, esses atos voltarão a ocorrer. E é necessário, pois nossa juventude pouco sabe sobre o tema; e sem compreendê-lo, corre-se o risco dos farsantes tentarem fazer fixar nas mentes das novas gerações inverdades sobre essas páginas infelizes de nossa sangrenta história.
Pior: se ignorarmos a realidade de nossa história, ventos estranhos e contrários à liberdade podem encontrar facilidade para entrar por nossas janelas e portas.
Esse retrocesso não pode ser permitido.
Ditatura nunca mais!
ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é professor de Literatura na UFMT e doutor em Jornalismo pela USP.